Claro que a autonomia é requisito imprescindível para o médico tomar decisões em emergências com risco de morte, situações em que o doente, muitas vezes, está inconsciente ou incapaz de compreender o perigo que corre. Ela é fundamental, também, para preservar o profissional de pressões para adotar condutas que ele considera erradas ou antiéticas, venham de instituições hospitalares, planos de saúde, autoridades governamentais ou do próprio paciente e seus familiares. Mais imprescindível ainda é a não interferência na autonomia e no ato médicos de forma a prejudicar o tratamento eficaz do paciente com características únicas, situações complexas que exigem do médico, no afã da cura ou do progresso significativo no quadro de seu paciente, muito mais do que o constante no rol deficitário da ANS. As ciências médicas são mais céleres e muito mais amplas do que o rol apresentado pela agência, que nada mais é do que um celeiro do lobby forte das operadoras de planos de saúde. A ANS fiscaliza pouco, pune pouco as gigantes do setor, e favorece demasiada e abusivamente as mesmas. O objeto deste artigo é exatamente demonstrar que a imprescindibilidade da autonomia médica responsável está sendo alvo de morte lenta ao longo dos últimos 15 anos pelas interferências abusivas das operadoras, com seus auditores capangas, sendo que, recentemente, o STJ acabou de cortar a jugular dos únicos detentores da técnica — os médicos — com o resultado do julgamento sobre o caráter axativo do rol da ANS.

Antes de adentrar o mérito do objeto deste artigo, cumpre esclarecer que não estamos aqui discorrendo sobre aquela autonomia que nega a ciência mundialmente reconhecida ou que desrespeita preceitos lógicos e éticos da classe. É inadmissível falar em autonomia quando estamos diante de bizarrices como a suposta liberdade para receitar remédios inúteis ou admitir que cirurgiões operem doentes sem indicação cirúrgica. Não! Não é sobre a autonomia médica irresponsável de que estamos falando, não se trata da famigerada prática chamada pelos americanos de “malpractice”. O que aqui defendemos, exatamente por sermos especialistas em Direito Médico (mais especificamente, atuantes em defesa dos profissionais da saúde em âmbito nacional), é a autonomia em bem cuidar, a autonomia para prescrever aqueles procedimentos, medicamentos e exames, entre outras coisas, que reconhecidamente trazem benefícios, cura ou alívio aos seus respectivos pacientes, mesmo que não constem no rol deficitário da ANS.

Cumpre lembrar o juramento de Hipócrates, bem como o dever de obedecer ao princípio da beneficência e o princípio da não maleficência. Obedecer ao rol taxativo da ANS é exatamente negar tais princípios e juramento. Como resgatar a autonomia médica e o ato médico, os quais são extremamente necessários, na verdade, essenciais tanto para os profissionais como para seus pacientes? E vamos além! Como resgatar a autonomia, o poder vinculante do médico assistente prescritor, que é basilar para que o sistema nacional de saúde seja devidamente eficiente? Existem inúmeras formas de realizar o resgate e a cura da medicina, mas, dadas a complexidade do tema e frente à crescente desunião da classe médica, elas serão objeto de outro artigo.



LOBBY DAS OPERADORAS

Voltemos ao que interessa no momento: a morte da autonomia e do ato médico, que outrora estavam lentas, agora andam a passos largos por conta do forte lobby das operadoras e da decisão teratológica, para se dizer o mínimo, datada do dia 08/06/2022, onde o STJ considerou o rol da ANS como taxativo mitigado. Não é de desconhecimento da classe médica as investidas abusivas das operadoras ao negarem procedimentos, materiais e exames por meio de auditores médicos que sequer praticam mais a medicina.

Estes costumam sentar em uma cadeira e, acatando ordens de superiores do convênio, glosam, negam e interferem reiteradamente no ato médico necessário ao paciente. Muitas vezes, tais negativas sequer possuem os requisitos mínimos exigidos por resolução e lei para serem válidas. Importante ressaltar o quase que completo desconhecimento médico sobre a validade ou não das negativas que recebem das operadoras, mantendo-se inertes perante os abusos. Atualmente, contamos com médicos que lutam por

seus direitos e se valem de advogados especialistas para passar o “pente fino” nas negativas inválidas ou abusivas dos planos e derrubá-las. Ainda que sejam poucos, já é muito interessante tal movimento de reação médica contra as abusividades.

Muito já poderia ter sido feito para garantir o mínimo de dignidade para a medicina. No entanto, com órgãos de classe desatentos e, sem medo de ser cruel, medrosos, omissos e em completa desunião, as operadoras foram tomando o espaço de algo que elas não possuem e nunca deveriam possuir: exatamente a técnica médica, ato privativo e exclusivo do médico, e essencial para todos os beneficiários pacientes. Diante de tanta omissão, chegamos ao ponto da quase morte da autonomia da classe, sobretudo agora, no momento em que o STJ decidiu pela taxatividade do rol da ANS, que passamos a explicar a partir do parágrafo seguinte.



ROL TAXATIVO

Em julgamento finalizado dia 8 de junho de 2022, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Essa decisão acaba afetando não só as milhares de pessoas com deficiências no país, como indivíduos com autismo, doenças raras e inúmeras outras enfermidades crônicas. Todos os cidadãos correm o risco de terem as suas terapias excluídas da cobertura dos planos, assim como muitos pacientes em tratamento de doenças graves, como câncer ou doenças degenerativas. Imagine o impacto direto na vida de milhões de famílias, que já se desdobram para arcar com o alto custo de um plano de saúde. Quando afirmamos que o rol taxativo mata, isso não é um exagero, uma vez que não mata apenas os pacientes — também mata a autonomia do médico, mata o ato médico em si. É o mesmo que dizer: o médico diagnostica, quer tratar o paciente, desenvolve uma relação de confiança, prescreve a melhor terapêutica e o procedimento adequado, mas serão as operadoras quem terão a palavra final sobre o referido paciente daquele médico (único detentor da técnica) poderá ou não se valer do tratamento indicado. Segundo o nosso ponto de vista de especialista em defesa médica, faltou engajamento da classe com relação a esse assunto da taxatividade ou não do rol, e ela também se omitiu em diversas outras situações, como ao não pressionar a ANS para a inclusão de novos procedimentos necessários e ao deixar de lutar pela sua autonomia frente às abusividades dos planos por meio de auditores ou regras descabidas. Obviamente, não é possível que os médicos continuem abaixando suas cabeças para as operadoras com medo de retaliação ou por falta de conhecimento da completude de seus direitos. O rol taxativo da ANS decidido pelo STJ comporta algumas excepcionalidades, como, por exemplo, casos em que, não havendo substituto terapêutico ou estejam esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido expressamente indeferido pela ANS a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluindo a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.

Ora, eminentes médicos, essas excepcionalidades não passam de balela e muita burocracia frente ao desespero de muitos pacientes e à pressa para um devido tratamento, sob pena de sequelas irreversíveis, uma vez que, para preencher os requisitos das excepcionalidades, os médicos, bem como os advogados especialistas em Direito Médico, terão que percorrer, muito mais do que antes, uma verdadeira via-crúcis para fazer a prova dos critérios exigidos na excepcionalidade. O NatJus e a própria ANS, mencionados nos votos dos ministros do STJ, embora possam ajudar a esclarecer a situação em cada caso concreto, não servem para decidi-la, pois não examinam, diagnosticam, prescrevem ou acompanham cada um dos pacientes, como faz o médico responsável. Isso equivale a dizer que estão matando, aniquilando o ato médico, a autonomia médica, e passando a técnica, que é exclusiva da classe, para terceiros com objetivos no mínimo obscuros.

Vale lembrar que a medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa, racial, política ou social, e colaborar para a prevenção da doença, o aperfeiçoamento da espécie, a melhoria dos padrões de saúde e de vida da coletividade.



LEMBREMOS ALGUNS DEVERES FUNDAMENTAIS DO MÉDICO

guardar absoluto respeito pela vida humana, jamais usando seus conhecimentos técnicos ou científicos para o sofrimento ou extermínio do homem, nem podendo, seja qual for a circunstância, praticar algo que afete a saúde ou a resistência física ou mental de um ser humano, salvo quando se trate de indicações estritamente terapêuticas ou profiláticas em benefícios do próprio paciente (se é um dever, cabe ao médico lutar para efetivá-lo); exercer seu mister com dignidade e consciência, observando, na profissão e fora dela, as normas de boa ética e da legislação vigente, e pautando seus atos pelos mais rígidos princípios morais, de modo a se fazer estimado e respeitado, preservando a honra e as nobres tradições da profissão médica; procurar aprimorar e desenvolver constantemente seus conhecimentos técnicos, científicos e culturais, e colaborar para o progresso da medicina; apoiar as iniciativas e movimentos de defesa dos interesses morais e materiais da classe médica por meio de seus órgãos representativos; abster-se escrupulosamente de atos que impliquem na mercantilização da medicina, e combater os que forem praticados por outrem.

Em outras palavras, ou os médicos começam a agir desde já para curar a medicina, salvar a medicina, ou ela morrerá, tornando-se a única profissão brasileira que aceita pacificamente interferências de toda ordem. Enquanto a classe médica não reage à altura, os advogados defensores do Direito Médico estão fazendo o papel de “médicos da medicina”, ao tentar incansavelmente manter viva a profissão. Continuaremos tentando, inclusive levando a decisão teratológica do STJ ao Supremo Tribunal Federal (STF). Sendo este último o guardião das garantias constitucionais, ele certamente modificará a referida decisão. Reagir e lutar são as medidas que se impõem aos médicos.


* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam,
necessariamente, a opinião da RMA Adivocacia.
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